Por| Hermes Fernandes
Há muito temos ouvido de nossos leitores que a Igreja não deve se envolver em questões políticas. Fato é que a falta de credibilidade dos poderes executivo e legislativo salta aos nossos olhos. O judiciário que, pela práxis, deveria coibir e punir o não ético, se faz – por vezes – desprovido desta autoridade, ausente de idoneidade. Não são raras as notícias dos pregões de sentenças, ou mesmo magistrados a serviço de interesses pessoais ou institucionais, que não os da polis.
Em resposta, nossos teólogos e sacerdotes são suscitados à uma palavra concomitante à Vontade do Senhor. O Espírito de Profecia sempre esteve presente na história do Povo de Deus. Já nos livros históricos da Bíblia, temos o Profeta Samuel, que foi chamado por Deus a estar intimamente ligado ao nascimento da monarquia hebraica. Podemos ver estes fatos no Primeiro Livro de Samuel. O povo hebreu pede um rei (cf. 1Sm 8,4-6). Coube ao profeta consultar se esta era a vontade de Javé (cf. 1Sm 8,6-9). Neste sentido, podemos ver a participação de um líder religioso, Juiz e Profeta, na passagem da era dos juízes à era dos reis. Passados os anos, a destituição de Saul também se deu por participação do profeta (cf. 1Sm 16,1-13).
Um profeta era alguém levantado por Deus para levar sua mensagem ao povo israelita e a outras nações. O contexto em que estiveram inseridos, sempre teve correlação política. Suscitou homens e mulheres para profetizarem em seu nome, a exemplo de Moisés, Elias, Eliseu, Isaías, Jeremias, Daniel, Ezequiel, Débora, Hulda, entre tantos outros. Em todos estes homens e mulheres de Deus, o chamado e a profecia esteve relacionada à fé, à fidelidade ao Senhor e às dificuldades dessa correlação. Estas dificuldades vinham, por vezes, de dimensões políticas. Foram muitos os cativeiros, as circunstâncias de aculturação da fé, opressão econômica, política e religiosa.
No Segundo Testamento, Jesus apresenta sua missão memorando o Profeta Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me conferiu a unção para anunciar a Boa Nova aos pobres. Enviou-me para proclamar aos cativos a libertação e aos cegos, a recuperação da vista, para despedir os oprimidos em liberdade, para proclamar um ano de acolhimento da parte do Senhor.” (Lc 4,18-19 – In: TEB). Palavras chave como pobres, oprimidos, cativos dão-nos luz à pertinência sócio-política do ministério de Jesus. Tanto o é que foi julgado e condenado por dois poderes. Há que se lembrar, também, que a execução de Jesus se deu por métodos políticos. A crucifixão era própria aos agitadores e criminosos que se punham em cheque com o Império Romano.
Na Igreja nascente, o apóstolo Paulo mostra a importância dos profetas, conclamando os primeiros cristãos ao Espírito de Profecia, pois revelavam os mistérios de Deus, fundamentando a Igreja Primitiva. A missão desses profetas também era proclamar e interpretar a Palavra de Deus, para exortar, animar e edificar. Era também papel deles combater a infidelidade, proclamar a justiça, advertir do juízo vindouro. Por causa disso, muitos profetas eram rejeitados e perseguidos.
Hoje não podemos ser diferentes. Muitas de nossas verdades, advindas do Evangelho, são ameaçadas. A vida em sua plenitude é preceito incontestável (cf. Jo 10,10). Entretanto, não são raras as iniciativas de se liberar a morte não natural, por justificativas judiciais. Sejam elas a pena de morte, eutanásia, aborto. Além: podemos entender que tudo que ameaça a dignidade da vida, entra em cheque com esse imperativo do Evangelho. Seja a miséria, os preconceitos de todas as formas, a injustiça e violação dos direitos fundamentais. Aqui podemos lembrar o célebre texto de Amós: “Que o direito jorre como água e a justiça seja uma torrente inestancável” (Am 5,24). Esta palavra está inserida num contexto em que o profeta explicita o tipo de culto desejado por Deus. Os cultos espetaculares, com suas esplêndidas liturgias que demonstravam grande fervor religioso, não passavam de disfarces para esconder o grosseiro egoísmo e ateísmo prático dos líderes. Não devemos nos esquecer da vinculação do santuário de Betel à coroa e de como os sacerdotes eram funcionários do rei. Em Amós 7,13, Amasias, sacerdote de Betel e consequentemente funcionário de Jeroboão II, afirma que Betel era o santuário do rei e ali era o templo do reino, deixando claro que a situação religiosa estava sob o controle real. É indiscutível que o templo foi facilmente manipulado por razões de Estado. Amós não se opõe à instituição do sacerdócio. Ao contrário, defende a dignidade do culto. Todavia, quer trazer à luz a necessidade de que este seja instrumento de promoção do Bem, resultante da íntima relação de Deus e os Homens. Talvez seja possível afirmar que o profeta propunha nova forma de adoração, fundamentada na prática da justiça e no restabelecimento do direito dos pobres e explorados. Nos profetas encontramos o desmascaramento da violência e da superficialidade do sistema religioso e a declaração de qual rito é, de fato, agradável a Deus: a prática da solidariedade. É preciso insistir no fato de que, para o povo de Deus, a justiça representa tanto o problema essencial da existência quanto um elemento essencial de saúde social. Nada mais político no exercício da fé. Em Jesus, esta opção pela Verdade, pela Justiça e pelo Bem; chega à plenitude.
E o Magistério da Igreja? No Catecismo da Igreja Católica temos versado claramente a relação da Comunidade Cristã e a Política. “Faz parte da missão da Igreja ‘proferir um juízo moral também sobre as realidades que diz respeito à ordem política, quando o exijamos direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas, empregando todos os recursos – e somente estes – que estão de acordo com o Evangelho e com o bem de todos, conforme a diversidade dos tempos e situações.'” (CIC: 2246) Neste sentido, podemos entender que a crítica da Igreja face aos projetos anticristãos, advindos do Poder Público ou Legislativo, se fundamenta no desejo de promover as Verdades do Evangelho. Estando a Vida ameaçada, assim como a salvação das almas, o profetismo se faz imperativo.
Atos de maldade, violência e injustiça provocam Javé. Vivemos num tempo em que é praticamente impossível não ser envolvido com a exploração do pobre no mundo. No entanto, a solidariedade é palavra que assume contornos de arcaico e de raridade. Esquecemo-nos com muita facilidade de que a medida de uma sociedade plenamente humana reside justamente na vida de seu povo pobre. Uma sociedade em que falta o cuidado pelo vulnerável/pobre é, significativamente, desumana e desumanizadora. A opressão do fraco pelo forte há de se tornar na literatura profética um sinal incontestável da negação de Deus. Nesse sentido, a negação de Deus não passaria pela confissão religiosa, mas, sim, pela negação de gestos de solidariedade e de proteção em relação aos mais fracos. Não se pronunciar diante de atos de injustiça, fere o amor de Javé por cada homem e mulher. Assim, calar-se diante das mazelas sociais e políticas se faz pecado, ferindo a vontade de Deus. A Igreja, continuadora do Mister de Jesus, deve se manter em constante relação com o caminhar da política. Sendo promotora da Vida, denunciando os projetos de morte. Em todas suas faces.
Deixe um comentário